sssssA capacidade de pensar conscientemente sobre os sons da fala e suas combinações assume especial relevo para a aprendizagem da leitura e escrita, que é a aquisição mais importante nos primeiros anos de escolaridade da criança. De forma sucinta, pode dizer-se que esta complexa tarefa resulta da relação entre a escrita das palavras e a oralidade, o que implica a capacidade de identificar os sons da fala (fonemas) e manipulá-los, de forma a estabelecer a relação necessária entre eles e a sua representação ortográfica (Lane & Pullen, 2004; Vale & Caria, 1997; Viana, 2006).
sssssA escrita alfabética da língua portuguesa é, essencialmente, fonémica, a qual se estabelece através do princípio alfabético da escrita: a unidade escrita (grafema) é relacionada à unidade sonora da palavra (fonemas) (Gathercole & Bradedeley, 1993 cit. por Freitas, 2004) através da reflexão acerca dos sons da fala e sua relação com os grafemas, o que, por sua vez, requer o acesso à CF (Freitas, 2004; Teles, 2004).ssAssim, é possível compreender a existência de uma relação entre a CF e a aprendizagem da leitura e escrita, verificando-se que, durante algum tempo, os investigadores se questionaram acerca do tipo de relação que se estabelecia entre estas capacidades.
sssssAlguns autores afirmavam que a CF melhorava a leitura e escrita, refutando a situação inversa (Lundberg et al., 1988 cit. por Freitas, 2004).
sssssContrariamente, Morais, Cary, Alegria e Bertelson (1979) e Read et al. (1986) referiam que era no decorrer do processo de aprendizagem de leitura e escrita que a CF se desenvolvia (Freitas, 2004; Pestun, 2005). sssssAlgumas destas concepções não contemplavam todos os níveis de CF, pelo que Treiman e Zukowski (1996) explicam que a consciência de sílabas, aliteração e rimas pode desenvolver-se sem o conhecimento da escrita; o mesmo não se pode afirmar para a consciência fonémica, que resulta, parcialmente, do contacto com a escrita, o que também foi confirmado nos estudos de Coimbra (1997) e Freitas (2004) (Freitas, 2004).
ss Adams (1990) e Morais, Mousky e Kolinsky (1998), numa perspectiva de reciprocidade entre a CF e a aquisição da escrita, defendem que alguns níveis de CF antecedem a aprendizagem da leitura, enquanto outros, mais complexos, derivam dessa aprendizagem, pelo que as crianças já detêm capacidades metafonológicas prévias à aquisição da escrita, desenvolvendo outras e aperfeiçoando as que já possuem através desta aquisição (Freitas, 2004; Sim-Sim, 1998).s sssssNa mesma perspectiva, Yavas (1989) argumenta que a aprendizagem da leitura origina o desenvolvimento das capacidades metalinguísticas, as quais, por sua vez, facilitam esta aprendizagem. Para Cardoso-Martins (1991), a aprendizagem da correspondência entre a sílaba falada e a escrita contribui, possivelmente, para a consciencialização mais directa dos fonemas (Freitas, 2004).
sssssActualmente, sabe-se que há uma relação de reciprocidade e interdependência entre a CF e a aquisição de leitura e escrita. Assim, a CF facilita o processo da aprendizagem da leitura e escrita e este último processo favorece o desenvolvimento da CF, particularmente da consciência fonémica (Adams, 1990; Freitas, 2004; Morais, Mousty, Kolonsky, 1998, cit. por Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006; Pestun, 2005; Viana, 2006).
sssssEmbora o desenvolvimento desta capacidade se inicie desde cedo (Bradley; Bryant, 1983; Carraher; Rego, 1984; Capovilla; Capovilla, 1998; Liberman et al., 1974; Torgensen; Wagner; Rashotte, 1994, citados por Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe, & Bandini, 2006) , é através da exposição formal ao sistema alfabético, com a aquisição da leitura e escrita, que se dá o aprimoramento e pleno desenvolvimento da CF (Goswani & Bryant, 1990; Maluf & Barrera, 1997; Morais et al, 1979; Morais, Mousty, Kolinsky, 1998 cit. por Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006).
sssssssAssim, a CF parte de um nível implícito, de análise de sons, para um explícito, essencial na correspondência fonema-grafema (Freitas, 2004).
ssssA adequação desta capacidade metalinguística, aquando do inicio da escolaridade, assume extrema importância, uma vez que este é um forte preditor para a aquisição e desenvolvimento adequados da leitura e escrita (Vale & Caria, 1997).
ssssEstudos mais aprofundados tentam identificar quais os níveis da CF que mais influenciam o sucesso na aprendizagem da leitura e escrita. Alguns autores referem que a consciência silábica, mais especificamente, o domínio da capacidade de segmentação e manipulação silábica, são essenciais para o sucesso na aprendizagem da leitura e escrita, devendo estar consolidados previamente à entrada na escola (Sim-Sim, 1998).
sssssContudo, estudos recentes referem que a consciência fonémica é a capacidade que melhor prediz o sucesso na aprendizagem da leitura e escrita, constituindo um pré-requisito para esta aprendizagem (Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006; Blachman, 1994; Bradley & Bryant, 1978 cit. por Smiley & Goldstein, 1998; Hoien et al., 1995; Hatcher & Hulme, 1999 cit. por Nancollis, Lawrie, & Dodd, 2005; Viana, 2006).
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sssssTodavia, aquando da entrada na escola, as crianças demonstram maior dificuldade nas tarefas relativas à consciência fonémica, não só por serem tarefas mais complexas, mas também porque ainda não têm o apoio da escrita (Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe, & Bandini, 2006).
sssssNeste sentido, as crianças em início de escolaridade adquirem conhecimento adicional sobre a estrutura linguística à medida que decorre a aprendizagem da leitura o que favorece o desenvolvimento da CF. É essencial que as crianças recebam instruções formais que explicitem as regras de manipulação dos sons da fala na escrita alfabética (relações fonema – grafema), para promover maior desenvolvimento da consciência fonémica (Alves, Freitas & Costa, 2007; Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006; Bradley & Bryant, 1978 cit. por Smiley & Goldstein, 1998; Freitas, 2004; Jenkins & Bowen, 1994 cit. por Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006; Sim-Sim, 1998).
sssssA combinação de ambos os factores deverá culminar no domínio do princípio alfabético (Byrne, 1998; Byrne, Fielding-Barnsley, 1989 cit. por Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006).
sssssSendo um bom leitor, um bom descodificador do código alfabético e visto esta etapa ser tão importante para que seja possível atribuir um significado a um texto, o treino da CF pode ser bastante útil, facilitando a aprendizagem da leitura e escrita, acelerando-a e minimizando eventuais frustrações que possam advir desta complexa aprendizagem (Vale & Caria, 1997).
Estudos científicos
sssssA influência da CF na aquisição e desenvolvimento da leitura e escrita tem sido estudada por muitos investigadores. Estes colocaram questões e encontraram respostas fundamentadas em dados estatísticos e resultados significativos, os quais justificaram o empreendimento da investigação nesta área por várias décadas e até aos nossos dias.
sssss1. A consciência fonológica melhora o desenvolvimento da leitura e escrita?
sssEsta questão foi alvo de inúmeros estudos tendo-se estabelecido os seguintes pressupostos:
sss- É o mais estável e robusto preditor de sucesso na aprendizagem da leitura e escrita (Lonigan, Burgess & Anthony, 2000 cit por Hogan, Catts & Little, 2005); sss- É um facilitador na aprendizagem da leitura e escrita de crianças com e sem dificuldades de aprendizagem (Ball & Blanchman, 1991; Barrera & Maluf, 2003; Bradley & Bryant, 1983; Byrne & Frielding-Barnsley, 1989; Calfee, Lindamood & Linda Mood, 1973; Capovilla, 2000; Capovilla & Capovilla, 2000 cit. por Melo, 2006; Cardoso-Martins, 1991, 1995; Cunnigham, 1990; Ehri et al., 2001; Hatcher, Hulme & Snowling, 2004; Juel, Griffith & Gough, 1986; Hatcher & Hulme, 1999 cit. por Santos & Maluf, 2007; Liberman, et al, 1974; Lundberg, Frost & Petersen, 1988; Nancollis, Lawrie & Dodd, 2005; Pestum, 2005; Scanlon & Vellutino, 1996; Vellutino & Scanlon, 1987, entre outros cit. por Bernardino, Freitas, Souza, Maranhe & Bandini, 2006; Santos 2004 cit. por Santos & Maluf).sssss2. Há diferenças entre a aplicação do treino da consciência fonológica antes ou depois do processo de alfabetização?
sssEsta hipótese foi levantada em estudos que possuíam amostras com pré e pós leitores, isto é, crianças do pré-escolar e crianças que já tinham iniciado o processo de alfabetização. As conclusões diferem entre os autores, tal como se observa nos estudos abaixo enunciados:
sss- De acordo com Schneider (1997) e Lundberg, Frost e Petersen (1998), a intervenção pode já ser realizada em crianças do pré-escolar (Santos & Maluf, 2007);
sss- Segundo Hatcher e Hulme (1999), a intervenção obtém resultados mais significativos se o treino da CF for conjugado com o ensino institucional da leitura (Santos & Maluf, 2007);
sss- No estudo de Santos (2004), o autor refere que, apesar de haver benefícios na articulação entre as capacidades metafonológicas e as actividades de ensino de leitura e escrita, tal relação é facultativa (Santos & Maluf, 2007).
sssss3. A intervenção ao nível da CF dá acesso directo ao conhecimento do princípio alfabético?
sssResultados de investigações reforçam a ideia de que o treino de CF, por si só, não permite às crianças o domínio do princípio alfabético.
sss- O estudo de Byrne e Fielding-Barnsley (1991) concluiu que o conhecimento das letras e da identidade dos fonemas são capacidades necessárias, embora insuficientes, para a aquisição do princípio alfabético (Santos & Maluf, 2007);
sss- Segundo Torgesen, Morgan e Davi (1992), o conhecimento de que as palavras são constituídas por fonemas não assegura a compreensão do princípio alfabético (Santos & Maluf, 2007).
sssss4. Todas as capacidades da CF influenciam, igualmente, a leitura e a escrita?
sssVários estudos têm procurado identificar diferenças na influência que cada uma das capacidades da CF tem na aprendizagem da leitura e escrita. Embora os resultados dos estudos não sejam unânimes, parece prevalecer a ideia de que a consciência fonémica é aquela que mais influencia esta aprendizagem.sss- No estudo de Hohn e Ehri (1983) foram implementados dois programas de treino de consciência fonémica. Os resultados revelaram que a associação dos fonemas aos grafemas favorece a aquisição de um sistema visual símbolo-som, que é usado pela criança na distinção e representação dos fonemas (Santos & Maluf, 2007);sss- Cunningham (1990) investigou o papel da instrução implícita e explícita no treino da CF, com o intuito de averiguar a influência das capacidades fonológicas na melhoria das capacidades leitoras. Os resultados desta investigação indicaram que as crianças podem adquirir capacidades de consciência fonémica através de ensino directo (explícito) e que a consciência fonémica influencia as capacidades de leitura (Santos & Maluf, 2007);
sss- Wise, Ring e Olson (1999) revelaram que as metodologias que contemplam, não só a manipulação dos sons, mas também a consciência articulatória (atenção explicita à articulação), resultam em melhorias mais acentuadas na leitura e escrita, comparativamente a metodologias que contemplem apenas uma área (Santos & Maluf, 2007);
sss- De acordo com o estudo de Cardoso-Martins (1996) concluiu-se que a aliteração contribui para a aprendizagem da leitura e da escrita. Por outro lado, a sensibilidade à rima, aparentemente, não exerce um papel fundamental no domínio do princípio alfabético, por parte das crianças brasileiras (Melo, 2006);
sss- Goswami & Bryant (1997) postularam que a capacidade para detectar rimas e aliterações são factores preditivos do sucesso na aprendizagem da leitura e escrita (Nascimento, 2009);
sss- Diferentes autores consideram que a análise fonológica, ao nível da sílaba e em tarefas de aliteração, assumem uma importância particular na aquisição da leitura e da escrita (Capovilla, Colorni, Nico, & Capovilla, 1995; Correa, 1997; Correa, Meireles, & Maclean, 1999; Maluf & Barrera, 1997 cit. por Melo, 2006).
sssss5. A influência da CF na melhoria da leitura e escrita também se aplica a casos de insucesso escolar ou a crianças com deficiência?sssEstudos comprovam que existem benefícios no treino desta capacidade em casos de insucesso escolar e em determinadas patologias, como Trissomia 21, Dislexia e Perturbações Específicas do Desenvolvimento da Linguagem.sss- Cardoso-Martins (1996) empreendeu um estudo em que era trabalhada a capacidade de detecção de rimas em crianças e adultos com e sem Síndrome de Down, tendo-se concluido que para ambos os grupos a capacidade de identificação do fonema inicial foi benéfica para a aprendizagem da leitura e escrita (Santos & Maluf, 2007);sss- Estudos conduzidos por Cárnio e Santos (2005) revelaram que a intervenção ao nível da CF, mesmo em casos de insucesso escolar grave, melhora significativamente a leitura e escrita (Santos & Maluf, 2007).